A verdadeira faceta do feriado do
segundo dia do mês de novembro me foi apresentada no ano de 1999 em pleno
cemitério, o dia dedicado a homenagear os mortos era o dia em que
eu ajudava meu irmão no comércio de arranjos de flores, o caloroso sol no apogeu da primavera anunciava um dia de júbilo e sorrisos, todavia, o
sorridente sol que brilhava sobre a Bela Cintra no dia dois de novembro não
raiava com o mesmo fulgor no majestoso cemitério do bairro da Consolação, a
lamúria esculpida nos olhos inanimados de gigantescas estátuas emanava um
flutuante ar de agonia cercado por sacros muros e símbolos eclesiásticos, sob
esse clima nefasto o contido pranto alheio me mostrava a profunda lamentação
pela perda contemplada diante de esplendorosas lápides, mausoléus refugiavam
recordações, alegrias, tristezas, tal avaliação evidenciou a verdade sobre a
existência da felicidade, veja, a mirrada idosa que sorria para a foto de seu
filho sobre seu jazigo provavelmente se
deleitava na prazerosa lembrança da dor do parto que deu vida ao seu finado
primogênito, na mesma tônica o trio de irmãos que deixou um par de chuteiras
sobre o sepulcro do saudoso caçula homenageou o golaço do falecido irmãozinho na final do campeonato inter escolas que lhes encheu de orgulho, viúvos e viúvas em risos e choros com
olhares que projetavam momentos de regozijo, centenas de projeções que
revelavam instantes de felicidade em meio a um dia funesto, tais olhares também
despontavam angústias causadas pela impossibilidade de reviver momentos
compartilhados com os amados finados, por assim ser, o lamento oriundo da
perdida felicidade é a personificação da queixa irremediável, isso traduz o
advento da morte e o impacto devastador ligado a ela, afinal a morte sentencia
o fim de prazeres possíveis apenas sob o comando daquele que jaz, o fim de
contentamentos possíveis apenas na presença daqueles que
se foram, em contrapartida, a morte concede aos atormentados por ela a
conformidade, pois essa é a única alternativa diante de seu encanto irrevogável
e intransponível.
Terrível mesmo são as bobagens
que regem o espírito inflexível, cruel mesmo é a irredutível convicção da
aborrecível intelectualidade, é bárbaro pensar em prioridades e relevâncias em
meio ao efêmero, pois então, é bom se manter lúcido nos instantes em que soam as
trombetas de suave melodia, ser bem aventurado nos dias de fartura e bom vinho,
no inverno se aquecer no forró, na primavera árabe colher flores e capturar
borboletas, no outono se expurgar da contagiante e contaminada pureza, no verão
se libertar da pseuda humanidade e em dias de calor e sede mergulhar no violento
mar mesmo sem saber nadar.
É espantoso perceber que ainda
exista fidelidade a solidão, a solidão é digna de respeito pois os mansos de
coração não ousam traí-la, mansos mártires que se flagelam com insuficiente
amor, de certo, tudo é insuficiente, a insuficiência da vida dá vida à morte,
bem como a insuficiência do convite de mão estendida dá vida a um eloquente
não, a justificativa atribuída à tais insuficiências são insuficientes e que
portanto dão vida à dúvida, com isso é possível dizer que a dúvida é soberana, promotora de
escravidão.
Duvido muito que escravos
rebeldes não afrontam a soberana coroa cintilante ornada por fulgentes pérolas
douradas em forma de pontos de interrogação, eles a cultuam bem como se
rebelam, aos obedientes resta apenas o açoite enquanto os rebeldes em plena
primavera gritam:
- Independência ou morte! Porém, o grito por si só nunca é suficiente.
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