quinta-feira, 20 de julho de 2017

Lenitivo



  Ao desembarcar em Kattegat, o navegante viking calorosamente saudado no porto pelas mocinhas francesas, jovens polacas e por batalhões de loiraças, surge sob a vertigem do ópio ao qual se viciou, ópio que lenia a ferida de guerra que o atormentava, o brado em saudação a chegada do aplaudido guerreiro nórdico foi silenciado pela brisa hipnótica na qual ele estava submerso, as pupilass contraídas o impediam de testemunhar a plenitude da festividade que lhe fora oferecida por seus simpatizantes, o Dragão do mar estava em um multiverso alheio àquela festança que o aclamava, tempo e espaço distorcidos, o triunfo de sua revolução confundia-se com o fracasso do seu universo introspectivo, seu mundo agora era paralelo, prazeres e medos dependiam de mais algumas boas doses daquela substância que o amparou nos momentos de dor, daquelas doses que o inspirou rumo a vitória.

 Séculos depois outro herói encontrou nas substâncias químicas o necessário repouso, metralhadoras de flashes  que castigavam os olhos insóbrios do anjo de pernas tortas só eram suportadas por conta do profundo grau etílico ao qual o herói do  bi campeonato mundial estava mergulhado, aquele maldito afã de seus fãs era um grande tormento ao amado Mané, a lisura e habilidade mostradas dentro de campo não tinham a mesma eficácia para driblar a imprensa e escapar da sufocante perseguição, imprensa e fãs entristecidos por presenciarem um ídolo, um grande atleta entregue a embriaguez profunda, mas eles mal sabiam, não fosse esse mesmo composto alcoólico, Garrincha não teria encontrado a necessária inspiração para nos levar a conquistar o mundo no Chile em 1962.

 Não se pode negar que as drogas ao longo dos séculos tiveram grande contribuição no mundo da arte, elas traziam aquele estímulo a mais, a capacidade criativa escondida no âmago do artista era despertada pelo poder das drogas, as substâncias entorpecentes iluminavam a mente perdida na dor e com isso a obra de arte era beneficiada pela inspiração catalizada pela magia das substâncias químicas.

 Na arte da Guerra e na arte da bola, Ragnar Lothbrock assim como Mané Garrincha escondiam por detrás das drogas um rosto de mulher, o rosto que surgia sob o efeito da droga que inspirava o desembainhar da espada, que inspirava o arremate certeiro que estufava as redes. A dependência se justifica então, pois o uso abusivo do ópio e do álcool era a fuga da dor presente, mas por outro lado também era a busca pelo prazer ausente.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Burn


 O picar dessa cebola trouxe à mesa o pecado da ira, sua péssima coordenação motora ao moer esse punhado de ervas finas não é razão suficiente para explicar minha agressividade e remir minha culpa, meus olhos queimando talvez expliquem minha grosseria, atribuo então meu destempero à acidez que fluiu da cebola, não, não é o ardor da cebola a razão dessa impaciência, não são os olhos na dor, nem a assadeira ainda não polvilhada, nem o forno ainda frio com a chama apagada, essa fúria gratuita nasceu desses mesmos olhos agora ardendo em flamas, maldito dom da visão, a porta de entrada aos desejos, um convite ao pecado da cobiça, a ira então brotou do anseio, do desejo que penetrou por entres os olhos, justo então o castigo que a cebola deu a eles.

 Resta saber se essa água quente que espirra em mim é resultado do seu destrambelhamento, ou se é vingança em resposta a minha estupidez, suponho não ter sido tão rude a ponto de merecer um banho de água fervente, ao contrário da visão, o sentido do tato não teve participação no nascimento desse desejo, não merecia ser escaldado, venho então em defesa do paladar e do olfato, assim como o tato, paladar e olfato já são suficientemente castigados pelos anseios e pela vontade, pelo desconhecido prazer, a exclusiva experiência dos olhos e ouvidos inflama a gana do olfato ansioso pelo misterioso cheiro, incita a sede do paladar pelo secreto sabor e dá ao tato a temperatura ideal para sentir o desconhecido calor.

 Difícil será defender o dom da audição, tão culpado quanto o dom da visão, aquela agradável sonoridade captada pela audição produz um desejo pecaminoso de tom maior, creio que por isso a penitência aos meus ouvidos seja diária, a cada play dado na casa do vizinho surge o castigo ao meu ouvido pecador, todavia, benditas sejam elas, audição e visão, culpadas e privilegiadas, os dois únicos sentidos que têm acesso a esse desejo, afortunados por sentirem o deleite da contemplação.

 A exclusividade que esse prazer dá aos olhos e ouvidos está criando uma desfunção nos cinco sentidos, tal desequilíbrio está afetando meu sistema sensorial, olfato, paladar e tato estão insatisfeitos, estão se rebelando contra o corpo, o dom de enxergar e ouvir estão saciados enquanto os demais sentidos padecem diante dessa vontade.






sábado, 4 de março de 2017

Quarta-feira



Maldita ressaca! De tão grande que é esse mal estar matinal, essa fumaça na minha cara logo pela manhã pouco incomoda.

Passe pra lá com esse cigarro verde e me traga aquela água bem gelada que nos batiza e nos liberta nas manhãs de carnaval, muito se fala nas tristezas que duram por longas noites, mas nunca ouvi dizer sobre as angústias que surgem pela manhã, essa trágica quarta-feira que nos traz de volta ao mundo real só não é mais fatal, pois Mário Sérgio já nos avisou que o mundo não é de uma só manhã, então deixa correr, deixa passar, deixa rolar, de qualquer forma esse despertar é de fato cruel, ele nos revela que todo carnaval tem seu fim, que o sonho bom que ficou pra traz pode não mais se repetir, bem que me avisaram dos riscos de mexer com o sagrado, pior é mexer com o profano, pior ainda é mexer com os dois simultaneamente, resta agora colher as consequências desse atrevimento.

A mente ainda inflamada estimula o despertar, vou então ver se há algum feitiço capaz de dar fim a essa alucinação póstuma, curar essa perturbação dará novo fôlego, me dará astúcia para esta quarta-feira nunca mais em mim chegar.