terça-feira, 12 de abril de 2016

Amares.

                            

Sinta-se a vontade, a casa é modesta mas tem seus encantos, sente-se, sinta-se em casa. Veja só, nunca percebi aquele piano ali, por muitas madrugadas venho aqui e não percebo quase nada, nunca me assento naquele canto longe da janela e nem nunca saboreei os brócolis empanados ou as cachaças curtidas nas carquejas.

Façamos diferente nesta noite; Esquimó, esta aqui é a Lucy, tire os olhos dela, sente a frente daquele piano, o faça sangrar e nos faça sangrar!

Muito melhor agora! Note você doce Lucy que o dedilhar ligeiro do virtuosíssimo Esquimó e seu teclar percussivo lança pra fora do piano e pra dentro do ambiente os anos oitenta, o estalar das bolas de bilhar de marfim convergem com o animado ritmo extraído desse piano escondido, até essa inconveniente mesa de sinuca finalmente se encaixa.

Agora quero ver quantos tantos vão ficar aqui parados, garçons acelerados, corações também, observe nos olhos da Leca, dá pra ver a saudade sentida, esse olhar sempre surge quando o torpe Vega se faz ausente; perceba que em meio ao súbito despertar do ambiente, a repentina alegria que recaiu sobre um lugar apagado despertou o que há de pior em todos aqui presentes.

De cá da pra observar o bater dos pés da Clarice, moça cheia de pompa, sempre calada, apenas bate o pé dentro do balanço, jovem negra espirituosa, pomposa, estava mais pra uma idosa.


Olha como o Ralf brilha com a testa amanteigada, é muito gel fundido com suor escorrido dos seus cabelos de Elvis, Elvis também no balançar, ele quebra os joelhos como ninguém, a atenção demasiada que ele traz pra si é também o que o apaga.

O Alverique talvez seja o único que não foi pego pela trilha do Esquimó, neste ambiente capturado pelo som, Alverique é o único que não foi apanhado pelo bom tom, desiludido com a desigualdade social ele suspeita que os illuminates estão aqui no nosso meio planejando um novo golpe, sua paranóia lhe tirou a paz, em cada canto que vai ele supõe haver algum membro infiltrado de alguma sociedade secreta, há quem diga que Alverique sempre foi doido, mas nesta noite talvez ele enlouqueça de amor, pois até mesmo ele pode ser pego por esse estranho clima no ar.

Eu aqui não sei dizer o que acontece com o Raimundo, o safado nunca se ligou em música, sempre disse a ele que a patifaria por ele praticada era poema em muitos clássicos da música popular, sua vida é cantada em muitos clássicos da world music, o molejo dele naquela roda de morenas  me faz crer que ele finalmente entendeu isso.


Mesmo embriagado pela música, posso dizer que a performance do Esquimó não provém de sua virtuosidade enquanto instrumentista, tanto carisma ali interpretado é fruto de algo mais forte, suspeito que seja em tributo ao seu bebê recém nascido, inspiração nascida da fraternidade, fraternidade incondicional incapaz de reconhecer o bem e o mal, mas que representa muito bem o que é o amor.

Agora já dá pra ver, o ambiente alegre diminuiu a melancolia da Leca, ela enfim está feliz, está feliz e por isso infeliz, queria felicidade ao lado de Vega, resta só a saudade, toda dor por ela sentida e por ele causada não diminui a saudade, essa infelicidade mesmo em meio a felicidade é também o que chamam de amor.

Repare na rústica e bela Clarice, menina velha, a sonoridade de agora por ela sentida diminuiu sua cara amarrada, se essa amargura for tão boa quanto o amargor do chocolate, do café ou das cervejas tipo extra pilsen, o rapaz pelo qual ou a moça pela qual ela bate os pés em ritmo violento, gozará de bom grado quando ela enfim lhe dar a sua peculiar forma de  amar.


O fulgor e a energia do Ralf me impressiona, quanto mais ele dança menos ele se cansa, estão todos cansados desse excesso de exibicionismo, saiba porém, quando ele parar com a exibição, sempre haverá quem peça bis, seria como uma das tantas metáforas do amor que diz que a beleza só é percebida quando ela se vai.

Parece que a música deu sorte ao Alverique, ele parece apaixonado por essa moça que estranhamente se aproximou dele, só espero que ela não seja da maçonaria, mas caso seja seria uma união interessante, afinal a história mostra que o amor só funciona de modo estranho, assim, o amor entre esses dois doidos certamente daria certo.


O bom Raimundo é o que melhor se encaixa nesse clima aqui, safadezas e picaretagens a parte, mesmo diante da verdade o amor não depende dela pra existir, a verdade não é garantia de amor. Raimundo mente ao coração delas e olha só como elas sorriem, quantas delas será que ele ama? Por quantas delas ele morreria?

Me diga então menina se amor é justiça? Amar é injusto?

Este estabelecimento sem graça hoje cheio de graça, graças ao bom Esquimó e também a sua graciosidade doce Lucy, é a comprovação prática de que mais difícil do que definir o que é a vida é dizer ainda que de modo simples o que é o amor.

Saúde!!!