quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Ciranda


   O som estridente da chapa ardente, os estalos do fritar das tiras de bacon e a fatia de queijo borbulhando por sobre o hambúrguer somados com o aroma dos anéis de cebola sobre a chapa defumada, penetraram nos olhos, ouvidos e nariz do gordo loiro sentado no balcão da tradicional choperia de esquina, o gordinho assistia o espetáculo da espátula, uma afiada espátula manuseada por mãos ligeiras, seus olhos acompanhavam cada movimento, seus ouvidos identificavam o detalhe de cada ruído proveniente daquele palco repleto de gostosuras e sua boca  produzia uma enorme quantidade de saliva que escorria pelo seu queixo, a baba que fluía pelos cantos da boca do gordo apontava a profundidade da hipnose na qual esse faminto rapaz estava submerso. 

 Logo adiante no saloon à frente, havia outra vítima, ou melhor, outras vítimas, vítimas da hipnose do desejo, nesse outro cenário paralelo, o objeto de cobiça possuía qualidades mais estimulantes do que os ingredientes necessários paro o preparo de um cheeseeburguer, de modo que a excitação causada por um cheeseeburguer atende apenas o deleite do saborear, o prazer de degustar, já a excitação causada por esse outro agente hipnótico atende diversas formas de prazer, novamente então, olhos, ouvidos e nariz foram os receptores e porta de entrada para a ilusão transmitida por aquele conjunto tentador, a composição desse cenário de tentações se manifestava através do cardápio repleto de iguarias, dos barris carregados de chope, da agradável balbúrdia composta por beberrões que estilhaçavam copos após beberem à saúde do bom companheirismo, entretanto, foram as dezenas de moedas que entupiram a juke box que deram início a agitação naquele extinto saloon, os intermináveis bolerões estilizados de Odair José e Johnny Rivers selecionados por uma única mão garantiram o molejo do presente mulheril, as míticas canções de amor e ódio flutuavam por aquele salão esfumaçado e se misturavam à fragrâncias fortemente adocicadas, essa fusão perturbadora invocou ao ambiente uma altiva morena de cabelos longos, tal presença coloriu aquele escuro ambiente monocromático, o desenho da cintura daquela notável mulher foram pincelados delicadamente, sua presença voluptuosa entorpecia quem a olhasse, esse poder entorpecente corroeu a mente de uma presente tríade de charlatões, paralisados e privados da razão, tamanha foi a devoção desses três indivíduos movidos pela malemolência da linda morena.

 Estavam esses três cavalheiros localizados em distintos pólos desse salão de arquitetura triangular, a bela morena ironicamente centralizada estava ao alcance dos três, ela reinava de modo soberano, não havia ali concorrente que ousasse competir com tamanha volúpia, por outro lado, não demorou para que os três sacanas vítimas da sinuosidade da presente mulher de cabelos negros percebessem que para ter a exclusiva atenção da doce morena, teriam que primeiramente vencer a concorrência, teriam que inicialmente derrotar dois adversários em potencial para enfim se achegar  ao grande prêmio.

 Enquanto os três cães apaixonados se observavam e se estudavam meticulosamente, o feliz gordo do outro lado da rua era agraciado com aquele saboroso cheeseeburguer, diferente dos três homens que duelavam pelos lábios da morena, este rapaz já tinha em mãos um suculento lanche no qual se lambuzava de prazer.

 Os ponteiros do relógio seguiam em ritmo lento, ela alheia a tudo e a todos continuava a dançar, o gordo feliz continuava a mascar, já os três canalhas seguiam estáticos, seguiam silenciados pela dança e pela tensão.

 A tensão no ar bagunçou com o sistema nervoso dos três peões, tal inquietude fez o primeiro peão agir, este primeiro percebeu uma bainha de couro anexa ao cinturão do segundo e um volume suspeito por debaixo da camisa do terceiro, ele deduziu então que se tratava de uma faca e de um revólver, por estar desarmado ele quebrou uma garrafa de conhaque ao batê-la contra parede e passou a manuseá-la de modo ostensivo exibindo as lâminas na ponta da garrafa quebrada.  

 O segundo peão entendeu o gesto do primeiro e desembainhou sua faca e a cravou na parede, demonstrando deste modo toda sua força ao vencer a rígida parede de madeira com a ponta afiada de seu punhal.

 O terceiro assimilou o recado de ambos e por dispor da arma mais letal, apenas se espreguiçou lentamente pra melhor exibir seu revolver sob a camisa.

 No calor das exibições, o primeiro percebeu que estava em desvantagem em relação a seus adversários, preferiu então desistir do duelo, retirou-se do bar facilitando assim o caminho dos outros dois.

 O terceiro sabia que se sacasse seu 38 espantaria os presentes no bar, o alvoroço afastaria inclusive a cobiçada morena, diante disso, resolveu se retirar do bar pra evitar o confronto, optou por esperá-la e surpreendê-la na saída.

 Com o caminho finalmente livre, o segundo não hesitou em se lançar até à morena pra enfim desvendar seus mistérios, o uso da faca não mais seria necessário, bastaria apenas o fel destilado corretamente para quem sabe assim conquistar a atenção da moça.

 A sorte no entanto, virou-se contra o segundo peão, antes mesmo que ele se achegasse à morena, ela subitamente interrompeu a dança e dirigiu-se à saída do bar, o pobre rapaz não pôde usufruir da vantagem que se apresentou, coube a ele portanto seguir a moça até a saída, estava ele  ciente de que encontraria novamente do lado de fora aqueles dois adversários com os quais ele disputava a afeição da admirável fêmea, ele sabia que isso resultaria no reinício da disputa travada entre eles.

 Ela já do lado de fora iluminada pela luz da lua se revelou criminosamente linda, a baixa iluminação do salão impedia a precisa visualização dos atributos estéticos da morena, o magnetismo derivado de tais atributos era mais letal que as munições de um 38, mais afiado que um punhal de dois gumes e mais cortante do que qualquer lâmina improvisada, o poder bélico dessa morena veio à tona enquanto ela banhava-se do refrescante vento serrano, envolta pelo ar refrigerante que movia-se em torno de si, a morena protagonizava um belo espetáculo da natureza.

 O primeiro sacana que renunciou à disputa pela morena, expurgava sua dor no balcão da choperia sentado ao lado do lambuzado gordinho, a cada mordida do gordinho um gole da parte do peão, no ato do último gole dedicado à doce morena o peão avistou no outro lado da rua através da janela os lindos cabelos dessa morena cadenciados pelas rajadas de vento, foi quando ele se deu conta de sua inconsciente renúncia, boquiaberto e com a cerveja escorrendo da caneca ao tórax, ele percebeu que achegar-se àquela bela mulher implicaria no início de sua desgraça.

 O terceiro malandro posicionado exatamente ao lado da bela morena sentiu na pele a força daquela presença perturbadora, extasiado com tamanha graça, este peão tremia internamente à beira de um colapso, tal perturbação lhe fez compreender que não suportaria tamanho deleite.

 O segundo rapaz poucos metros atrás, não só testemunhou o grandioso espetáculo protagonizado pela linda morena, como também viu seus rivais derrotados pela manifestação grandiosa da moça cuja qual lhes fez rivalizarem, ele pôde enxergar o primeiro sacana de boca aberta no balcão do outro lado da rua e o terceiro posicionado a poucos centímetros da morena em estado de choque, não alheio a tamanho encanto, ele de modo mais lúcido também sabia do perigo que seria amar aquela mulher, com isso, seguiu o exemplo de seus adversários e ficou ali parado apenas contemplando a existência daquela morena regente do tempo e espaço.

 A alegórica ciranda composta por esses três malandros estáticos e pela sutil dança no vento interpretada pela cobiçada morena teve seu fim quando os ventos se acalmaram, os ventos se acalmaram e tudo se acalmou, tudo voltou a ser como era. 

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