Mas veja o que sobrou, resignação por um refrão de amor, a rigorosos dois graus centígrados, um gelo eterno, em combate ao gélido nevoeiro serrano a fervorosa água do enferrujado chuveiro cai por mais de duas horas sobre a congelada careca, o lado de fora da choupana é castigado pelos granizos pontiagudos que batucam pelas telhas de zinco, as ruas de paralelepípedos são enfeitadas por musgos escorregadios, bem vivos são os ruídos dos ventos, ventania soberana por entre as cabanas e por sobre os riachos que descem montanha a baixo, o distúrbio harmônico composto pelos fenômenos naturais resguardam desentoados raios solares que escapam por finas brechas, o lado de dentro também é assombrado, assombrado pela cama vazia, pelos chiados do micro rádio, pelo aterrorizante cenário abstrato imerso no quadro torto, pela televisão queimada, pelo celular fora de área, pela imprópria nudez ao cair da toalha que é prontamente substituída pelo edredom à frente que também é rapidamente trocado pelo cantil de alambique mineiro, o ato da ingestão revigorante aquece a preguiçosa mente e a resfriada pele, os ponteiros apontam apenas três horas de descanso, um necessário repouso que antecederá a consagração do sacramento, que precederá a passagem para o submundo que será construído concretamente de modo intangível nas entranhas do Subbar, o almejado descanso é abençoado por uma gigantesca cama e pela trilha da leve percussão chuvosa que assume o comando no lugar das estrondosas pedras de gelo enviadas pelos céus, o feixe de luz alaranjado que invade o quarto pela minúscula rachadura da porta anuncia o fim da tarde e o início da peculiar solenidade das trevas, é a deixa para o fechar dos olhos com destino ao prometido sonho bom que não foi guardado, então o trilhado “caminho só” pelas maravilhosas estradas do subconsciente expõe os vestígios das solas forjadas nos asfaltos e marcadas nas areias, para cada marca de chinelo um sapato diferente, para cada sapato uma história, para cada história uma sandália, sandálias elegantes condizentes com o esplendor dos monumentos que configuram o indeciso cenário, hora pelas ruas de São Paulo, hora pelas ladeiras de Osasco, a capacidade de viver o imaginário iguala o real ao irreal, por assim ser, os deleites possíveis apenas no irreal são vividos no real, bem como a busca vã no real se repete nos passeios irreais; em meio a essa árdua caça à presa que está presa, o despertar acontece por intervenção do moderno aparelho celular que é tudo menos telefone, os olhos se abrem e os ouvidos se trancam pra “Juke”, o período de três horas expirou, é hora de encarar as reais prometidas sete horas que dará acesso ao único e verdadeiro livre arbítrio, onde patrões, presidentes, reis e principalmente deuses são despedidos e depostos dando enfim lugar aos miseráveis e mal aproveitados setenta e três anos concedidos mesquinhamente aos samaritanos magnetizados na gravidade da terra, ora, é tudo muito rápido, muito feliz. É Grave!
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