”Se o bicho pega agente solta o bicho e rema
contra a maré”, foi essa filosofia que deu fim a preciosa vida do kengo
mais elegante do Mississipi, os muitos anos que correram não foram suficientes
para mitigar os erros desse fino kengo, tampouco sua morte gloriosa pôde lenir
seus tantos pecados.
Boas justificativas não faltariam pra
explicar a omissão desse torpe homem sob a crítica situação que se apresentou
diante de seus olhos, o alto nível de embriaguez bem como sua condição
sexagenária não lhe capacitavam pra desempenhar um papel heróico conforme
exigido pelo presente momento, de modo que nos primeiros instantes, nos
segundos iniciais da iminente tragédia, ele optou por apenas assistir o drama
corrente no coração do rio Mississipi vivido por uma jovem moça, no entanto,
movido por um forte instinto ele transformou-se e agiu em favor da moça que se
afogava no rio, esse súbito acontecimento interrompeu a introspectiva pesca
desse homem, o anzol no fundo do rio e ele mergulhado em um tempestuoso e
emblemático passado, parado e preso à lembranças picantes cheias de marcas,
passado glorioso, onde ocupava a posição de um verdadeiro cavalheiro em meio a
nata britânica, passado tenebroso, onde ocupava a posição de presidiário e
reles vigarista, viveu a experimentar os manjares do céu tanto como mendigou
sob os destroços do inferno, rememorava também acerca das perversões e antigas
paixões, as mãos calejadas e a boca desdentada simbolizavam o fracasso e o
sucesso pelos quais passeou, já não havia portanto moralismo que pudesse
impedi-lo ou vaidade que pudesse inibi-lo, já não sabia mais distinguir amor de
ódio, estava portanto aquela moça que se afogava condenada à morte, esse nobre
e pobre velho não dispunha de qualidades que o motivassem a salvar a jovem
moça, consciente de sua frágil condição, o velho senhor também sabia que aquela
mulher que era sugada pelas águas tinha poucas chances de sobreviver, ao
assistir o desespero da moça sobre a
fronteira da vida e da morte ele atirou-se na água e partiu em direção à moça a
fortes braçadas, esse seria mais um erro pra sua grande coleção, ele estava
ciente de que morreria.
O Shinigami, contudo, do outro lado da margem
intrigou-se com a intromissão do bom velho, nem mesmo o Deus da morte pôde
prever tal intervenção, o afogamento da jovem moça que viria a ser apenas mais
uma morte tediosa, despertou a atenção do Shinigami, de modo que Ele
assentou-se à beira do rio e acomodou-se pra melhor apreciar o interessante
embate pela vida protagonizado pela moça e o velho, o fulgor do heroico idoso
contrastava com o abatido semblante do Deus da morte, o Shinigami há milhares e
milhares de anos perdera a excitação pela existência, entretanto, o curioso
episódio onde o frustrado senhor lutava pela vida da jovem moça, reascendeu uma
pequena fagulha de ânimo no coração do Shinigami, há muito Ele não testemunhara
um drama tão emblemático, Ele portanto, apreciou cada segundo, cada detalhe
desse raro momento.
Ao ver o ofegante velho caído de braços
abertos à margem do rio Mississipi e ao seu lado a jovem moça sã, salva e de
joelhos clamando aos céus pela vida do velho kengo, o Shinigami considerou que a
troca feita pelo velho viril fosse conveniente, ele permitiu tal troca em troca
da agradável distração que o presente casal lhe proporcionou, permitiu assim
por mero capricho que a jovem moça continuasse a viver, Ele ouviu as batidas
finais do sexagenário e cansado coração e partiu sem destino com destino ao
tédio, partiu ao som do doloroso e choroso pesar da afortunada moça debruçada
sobre o falecido corpo vencido.
Partiu e se pôs a pensar na tediosa eternidade
na qual está inserido, o raro momento que ele testemunhou há poucos minutos
reavivou em sua memória lembranças picantes, lembranças de raros instantes de
excitação, quando como se mantinha preso nos quilombos a observar o conluio de
escravos negros em oposição aos senhores de engenho, fascinava-se pelo gingado
das negas e dos negos durante a falsa dança que levantava poeira, e durante as
rebeliões empolgava-se ao ver fortes pesadas e fortes lapadas fazerem o seu
trabalho de dar fim à vida alheia, a imponente covardia garantida pela pólvora
em duelo com a quente ousadia garantida pela energia física jamais o motivou a
intervir em tais duelos, as raras intervenções por parte do Shinigami
aconteciam nos momentos de eloquência, quando a nega ou o nego diziam palavras
cortantes em bom tom, quando falavam lentamente numa sutil melodia que ofendia
a formalidade de seus senhores, em alguns desses momentos o Shinigami enguiçava
o gatilho, bem como enguiçava a batida cardíaca dos malditos senhores.
Em 1822 no dia 7 de setembro, o grito da
independência desviou a bala que estava reservada ao peito de Dom Pedro, a
invisível lâmina do Shinigami partiu a munição ao meio, é sabido que não
compete ao deus da morte emancipar nem libertar, mas a outra opção que seria a
morte Ele desempenhou muito bem, ceifou centenas de vidas com a mesma lâmina
que prolongou a vida do imperador lusitano, a desagradável pronuncia portuguesa
é terrível até mesmo para o treinado ouvido milenar do Shinigami, contudo, foi o
conteúdo inserido nessas palavras mal pronunciadas que estimulou o
Shinigami a favorecer a alforria brasileira.
De fato a eloquência seduzia o irredutível
Deus da morte, a bordo de aviões Kamikazes, em um dia de muito trabalho quando
foi passageiro de centenas de aviões em um dia bastante instigante, a cada
grito de guerra suicida, diferentes eram as sensações causadas no Shinigami,
Ele apreciava os dizeres finais na hora da morte, a maioria deles cheio de
graça, pequena parte deles comovente, mas todos com um retumbante brado,
carregado de convicção e força estrondosa, eis então que alguns desses dizeres
fizeram o Shinigami pressionar o botão ejetor.
Não havia um critério a ser seguido para que o
deus da morte empunhasse sua foice, vidas eram ceifadas sem motivo aparente,
não existia um motivo para promover a mortandade, não era uma tarefa que ele
gostava nem que não gostava, sua função natural era natural, a realidade em
torno do ceifador pouco lhe estimulava, Ele dispunha de um temperamento oposto
ao anseio humano, ao passo que, para os humanos tudo é festa, os anos de vida
diminuem e contraditoriamente incitam a comemoração, como se os humanos
soubessem o quão torturante é a eternidade e comemorassem a proximidade da
morte.
A eternidade portanto, se tornou a grande
inimiga do Deus da morte, porém essa crise existencial por parte do Shinigami
nem sempre existiu, por muito Ele se deleitou com o ímpeto humano ao longo dos
séculos, Ele apreciava a configuração da sociedade viking, civilização bárbara
de crueldade refinada, o contraste da brutalidade harmonizando com a ordem
despertava a atenção do Shinigami, Ele intrigava-se com a supervalorização que
era dada a matança, com a premiação a algo tão banal, quando como as forças
armadas foram recompensadas e triunfaram publicamente ao exibirem a cabeça de
Lampião e seu famoso bando de cangaceiros que aterrorizavam o nordeste
brasileiro, fascínio maior o Ceifador tinha pelos mártires, mártires que se
compraziam em renunciar a própria vida por uma luta vã, pelos mártires
passionais que eram fisgados pelo misterioso poder da paixão, eventos dessa
natureza funcionavam como se estivessem sobre um palco de entretenimentos, onde
o Ceifador enquanto expectador se deleitava diante de um agradável espetáculo.
A paixão de fato era o sintoma humano que mais
ascendia o Ceifador, sua milenar experiência jamais permitiu que Ele
compreendesse o fulgor dessa paixão, era demasiado confuso ao Deus da morte
testemunhar a "caça às bruxas", mulheres levadas à fogueira e
incendiadas sob o pretexto de rebelião religiosa e política, mulheres que eram incineradas
sob o argumento de praticarem feitiçaria, por supostamente possuírem poderes
malignos, quando na verdade era a incapacidade do homem, seja ele do clero, da
plebe ou da alta corte, de justificar o tormento causado pelas minúcias de uma
menina, nesse período o homem era incapaz de explicar essa força monstruosa,
uma força altamente destrutiva que um simples suspiro feminino possui, ao longo
dos anos o homem aprendeu a decifrar essas minúcias, esses ditos encantos da
mulher nos tempos atuais foram decifrados e assim compreendidos, entretanto,
essa lucidez que o homem adquiriu no decorrer dos anos torna tudo mais confuso
ao Shinigami, pois o poder de destruição da mulher se amplificou grandemente,
nos dias de hoje o feitiço é muito maior,
o sorriso é mais sutil, possui o gracejo do oriente, sorriso cortante
feito um machado empunhado por uma altiva guerreira nórdica, a malícia feminina
que já era grande individualmente ganhou maior força ao se fundir à diferentes
texturas, à diferentes raças, a pele vermelha do sul da América
ganhou novo tom ao somar-se à leveza do mediterrâneo, nasce então o novo corpo
feminino místico e misto, movido pelo fervoroso sangue hibrido que passou a
correr nas veias da nova mulher, da mulher moderna não mais de sangue puro, mas
poderosamente renovada pela mistura étnica, essa nova mulher segundo o refinado
e experiente olhar do Ceifador é muito mais perturbadora do que a antiga mulher
de sangue puro, hoje a nova mulher reúne em si uma diversidade de valores
inexistes na pureza da mulher de épocas remotas, tal fato revela o engano do
homem em acreditar que enfim decifrou as minúcias de uma mulher, grande engano,
visto que nem mesmo o Deus da morte pôde compreender a força desse encanto.